Há muito tempo a criatividade de David Lynch deixou de ser um ponto cego no que diz respeito ao cinema contemporâneo. David Lynch é um inovador, mas não apenas mais um inovador por entre tantos outros. A marca que Lynch está imprimindo no conceito de cinema ainda não pode ser lida por completo, não possuímos a habilidade necessária para decodificá-los, como um alfabeto ainda desconhecido, não dominado, pertencente de uma cultura estrangeira, em suma: de outro mundo. O que podemos fazer é ressaltar alguns elementos fundamentais sempre presentes na sua obra:
O apogeu do simulacro: Nada é o que parece. O fenômeno quase nunca corresponde à sua causa imediata. A representação e a atuação são as marcas distintivas próprias dos personagens, encarcerados em subjetividades múltiplas e fugidias. Não há essências imutáveis, a natureza parece não existir para ditar suas leis e a consciência é a única realidade perdida na confusão de um sono em que a cada novo despertar adormece ainda mais profundamente.
Identidades Líquidas: O grande problema enfrentado constantemente por Lynch é trabalhar a identidade de seus personagens. Nunca se sabe exatamente quem se é. A questão aqui não é a identidade do outro, que na maioria das vezes aparece como fechada e estanque, mas a identidade do si-mesmo, o “mim” é indefinível e avesso a qualquer tipo de identificação. Para Lynch a proposição A=A nem sempre é verdadeira, a identidade não é uma regra para a subjetividade, pois ela não segue a lógica, não tem leis claras fazendo da descoberta de si sempre um ato traumático.
Realidade x ilusão: Não há fronteiras entre realidade e ilusão. Elas se misturam numa simbiose profunda e íntima constituindo na gama de experiência possível uma complexidade em si mesma factual. É o fato, em si mesmo, realidade. Ele se constitui de fantasia, ilusão, sonho. O real é ele sim a maior falsidade, não por que não existe, não, ele existe, mas porque é inapreensível. Não há vocabulário, palavra que preencha a realidade de significação. Nunca se pode conceber a realidade, num dado sentido, humanamente, a realidade não tem existência, ou o que ela é não faz diferença ou importância, mas o fato, o ‘acontecimento’, a impressão que marca o sujeito, que é verdadeiramente o que se pode dizer sobre o mundo, ou, como se faz ordinariamente, o que se pode chamar de ‘realidade’, com todas as aspas necessárias.
Variados são os filmes de Lynch que ilustram essas notas, Inland Empire (2006), Mulholland Dr (2001), Lost Highway (1997). No entanto, à título de ilustração, selecionei outra espécie de trabalho de Lynch, propagandas. A primeira é o making of de uma perfumaria francesa, a segunda do vídeo game Playstation e a terceira do Nissan Micra:
1º Gucci by Gucci, making of :
Notemos a dinâmica. O produto, o objeto que deve ser elevado como objeto de desejo pela propaganda só aparece no final. A escolha de mostrar a encenação por trás das câmeras, e não o trabalho final se deve ao fato de podermos olhar a questão em seu método. Lynch, com a câmera em sua próprias mãos, usa e abusa de luz e sombra, da disposição do espaço e da habilidade das duas modelos que fazem suas performances isoladamente com uma trilha ultra pós-moderna. Com imagens sobrepostas as modelos se fundem tornando-se dois lados de uma mesma mulher (lembrando em alguns aspectos Mullholand Dr), com este passo concluído, o produto aparece como o elo perdido de um encontro consigo mesmo. Veja o resultado final:
2º Propaganda Playstation II:
Não é com jogos emocionantes de velocidade, de guerra ou esportes radicais para atrair o consumidor. Lynch não apela para o game, verdadeiro objeto da campanha publicitária, mas apela para a intenção final do produto: tornar acessível ao usuário a experiência com um outro 'mundo', um outro espaço de significação, a possibilidade de uma fuga para uma outra concepção de natureza, leis e regras, outra formas de determinação, onde o passivo (cervo) torna-se ativo (Pick-up), o culpado inocente, o real ilusão e a ilusão o real, pois lugares diferentes, regras diferentes.
3º Propaganda do Nissan Micra:
No caso do comercial do Micra, ao contrário do que geralmente se entende por um comercial de carros, onde sempre se mostra um estilo de vida através de um papel performático de um consumidor ideal, Lynch se esforça por querer passar uma imagem de um veículo despojado de qualquer ideal de consumidor. Vemos sombras de pessoas a sair de becos, mais adiante, uma mulher, notemos que sem feição, desprovida de identidade, e o que comunica é uma voz artificial de uma boca digitalizada, impessoal. Talvez impessoal seja a característica nuclear que Lynch parece querer passar. Nissan Micra não é um carro para um tipo ideal de consumidor, não se encaixa em nenhum estereótipo. Lynch vai contra o sentido ordinário das propagandas que tentam seduzir o consumidor através da sedução produzida por um ideal, por uma forma de gozo determinado. Mas como, para Lynch, A nem sempre é igual a A, mostrar um carro desprovido de um dono ideal pode seduzir mais, uma vez que as pessoas já se acostumaram a se frustrar com os ideais que outrora almejaram. David Lynch joga com a verdade transvestida de mentira.
Sempre se pode pegar num filme de Alfred Hitchcock um atalho para Lacan. Interlúdio, tradução de Notorious para o público brasileiro, não deixa a desejar neste quesito. A genialidade de Hitchcock se faz mostrar na complexidade dramática de situações simples e pífias. A paixão só floresce quando não é mirada, mas, quando se vê como objeto de segunda mão, desinteressado e substituível.
Alicia (Ingrid Bergman) é filha de um condenado espião nazista que se suicidou na prisão. Sentindo-se deprimida ao observar o destino do pai, ela se entrega ao álcool e a relacionamentos promíscuos. Por outro lado, Devlin (Cary Grant) é um agente americano e recebe como missão convencer Alicia a ajudar o governo como uma espiã se infiltrando num núcleo nazista no Rio de Janeiro. A missão não é difícil, pois o que ela tem que fazer é apenas se aproximar de Sebastian, um alemão suspeito de espionagem, antigo amigo de seu pai, que já esteve, outrora, apaixonado por ela. O difícil é assumir a paixão inesperada por Devlin.
Alicia, podendo negar a missão, pois ela nada devia ao governo americano, resolve acatar a proposta de Devlin acreditando que só assim o terá por perto. Devlin se vê diante de uma paixão, mas em nome de seu cargo, e ao sucesso da missão, deve negar seu amor por Alicia. Paremos por um instante para observar tal fenômeno: ao negar para si mesmo sua paixão por Alicia, em nome de sua ocupação ética, Devlin está ocultamente dizendo: “Amo-te e em nome deste amor nego-te, pois não há sofrimento maior pelo qual posso demonstrar a realidade deste sentimento”. Ao negar seu amor, Devlin o está afirmando de forma incisiva. Alícia não pode compreender isso e a ausência de Devlin a faz cumprir seu dever como prova de seu amor.
Notemos que para o sucesso amoroso, o amor, em si mesmo, não pôde ser objeto direto do ânimo de nenhum protagonista. O amor é aquele objeto que só é alçado quando seguimos uma tragetória oblíqua, dissimulada, aquele querer que não quer, aquele olhar que não olha, aquele toque que não encosta. Hitchcock mostra que o herói, objeto da paixão feminina, só é como tal quando cumpre seu papel de herói, seu papel performático na esfera social e pública, em detrimento da amada.
Apenas da metade do filme em diante que o título 4 meses, 3 semanas e 2 dias, começa a fazer sentido. Não dá para prosseguir honestamente este comentário sem revelar o fundamental da trama. Então, prefiro fazer comentários superficiais. Como a maioria dos filmes produzidos no leste europeu é mostrado um país falido, decadente e em ruínas. É 1987 e a Romênia está passando pelos seus últimos anos de comunismo. Neste período é impossível ter acesso aos bens de consumo básicos pelas vias legais. Anticoncepcionais e cigarros são oferecidos apenas no mercado negro.
Gabita (Laura Vasiliu) e Otilia (Anamaria Marinca) dividem um quarto numa república estudantil financiada pelo governo aos universitários. Otilia topa ajudar sua amiga Gabita a cometer um ato que marcará para sempre a vida de ambas. Cristian Mungiu consegue mostrar com maestria a angústia, o medo e a frieza dos personagens. O filme não deixa de ter um toque moralista, pois aborda uma questão não apenas alvo das mais severas investidas religiosas, como também uma questão ética muito discutida em nosso tempo. Aliás, o filme está repleto de encruzilhadas éticas. Como moeda do ato criminoso que as duas se vêem constrangidas a cumprir elas devem se prostituir produzindo uma das cenas mas angustiantes do cinema.
Cristian Mungiu consegue mostrar pessoas reais por trás de seus personagens. O silêncio faz calar a dor e o medo. A angústia vem com sua presença fria tirar as protagonistas da solidão. Todo sentimento é sufocado mostrando uma força nos personagens que o espectador não sabe de onde vem. Trata-se de um filme seco. Um drama que não faz chorar.
“A separação também pode ser parte de uma história de amor”. Este é o slogan comercial do filme O Passado do diretor Hector Babenco baseado no livro de mesmo nome do escritor argentino Alan Pauls. O passado é um filme intrigante e por isso alvo de numerosas críticas, a maioria negativa, advinda de variadas direções. De fato, Não se trata de um filme fácil. São numerosos os elementos que contribuem para a complexidade da trama e aquela sensação quando se saí do cinema, quase que unânime, de que há alguma coisa não resolvida. É exatamente a partir desta sensação que pretendo começar.
Rímini (Gael García Bernal) é um homem que foge dos estereótipos cinematográficos das grandes produções. Ele não é apenas fraco e dependente, mas possui uma fragilidade de infantil peculiaridade. Jovem tradutor bem sucedido é casado há doze anos com sua primeira namorada, Sofia (Analía Couceyro). Por outro lado, Sofia guarda por Rímini um afeto quase que materno. É importante levar luz ao fato de que, embora estejam casados há doze anos, o casal não possui filhos. A separação é um fato e surge no filme instantaneamente no momento em que o filme surge ao expectador. Não se explica porque há a separação, mas ela aparece como um fato sintomático de insustentabilidade das tensões de um casamento que ultrapassa uma década.
Uma vez, dada a necessidade dos protagonistas viverem por si, terem que retomar suas vidas independentemente um do outro, eles vão se revelando lentamente e uma 'casca' caí ao chão após a outra. É importante notar alguns aspectos do desenvolvimento da vida, posterior à separação, de cada um dos personagens. Rímini se vicia em drogas e se envolve, respectivamente, com uma modelo narcisista e doentia de ciúmes (que é atropelada fatalmente após ver Sofia beijando Rímini à força), e, com uma companheira de trabalho com a qual se casa e tem um filho. Neste ponto podemos lembrar a semelhança com alguns filmes de Alfred Hitchcock em que o protagonista se apaixona pelos traços da amante e sempre recria em mulheres diferentes o mesmo movimento intencional que lhe dirige a elas. Rímini manifesta sua dependência da atual esposa quando se vê com uma amnésia que o impede de trabalhar e fazer suas traduções. Sofia, por sua vez, diz se envolver com homens apenas por sexo, pois a imagem de Rímini ainda ronda seu presente. A sensação de que há sempre algo não resolvido está na conclusão, que outrora os protagonista acreditaram levar a cabo, que sempre se torna uma questão em aberto a cada novo momento.
A razão de tantas críticas ao filme está num engano. O Passado não é um filme com pretensão de ser romântico. Ele é realista. Rímini não é um homem que agrada aos homens, pois está fora do ideal masculino. Muito menos Sofia, alguns a acharão desequilibrada e doentia, outros real em demasia. O Passado é um filme que mostra, sobretudo, que o passado não existe como um lugar, com um endereço situado. O passado é simultâneo ao presente, reconstruído a cada instante sempre na atualidade, no aqui e no agora, fazendo o próprio presente ser também passado. A questão fundamental é que na vida tanto de Rímini como de Sofia o passado não perde a sua atualidade, ele é revivido no presente pedindo sempre nova atualização, embora, a todo instante fracassada.